quinta-feira, 6 de maio de 2021

CERTIFICAÇÃO PROFISSIONAL

A lei que criou os Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia (IF) e instituiu a Rede Federal de Educação Profissional, Científica e Tecnológica (Lei nº 11.892, de 2008) dispõe que essas instituições têm papel de acreditadoras e certificadoras de competências profissionais (art. 2º, § 2º). Essa atribuição está relacionada ao previsto na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei nº 9.394, de 1996, art. 41), que estabelece a possibilidade de avaliação, reconhecimento e certificação de conhecimentos adquiridos no trabalho e em outros espaços de formação para fins de continuidade de estudos. Essa previsão legal, por sua vez, tem em seus fundamentos a compreensão de formação profissional em sentido amplo, englobando processos educativos que se desenrolam em diferentes esferas da vida social e que têm como objetivo, direta ou indiretamente, o desenvolvimento de saberes e valores julgados importantes para a atuação na vida produtiva. O reconhecimento formal de conhecimentos profissionais adquiridos ao largo do ensino oficial, particularmente daqueles adquiridos na prática laboral, é uma reivindicação de longa data dos trabalhadores. Mas, a questão da avaliação e da certificação desses conhecimentos encontra suas raízes ainda em outro terreno, o da organização de padrões de produção para a gestão da qualidade. Em âmbito internacional, desde o final da década de 1940, capitaneada por entidades congregadas na Organização Internacional de Normalização – ISO (International Standards Organizations), desenrolava-se a discussão sobre o estabelecimento de padrões mínimos de qualidade industrial. Essas referências passaram a servir de orientação aos processos de certificação de conformidade, classificadas em: certificações de produtos, processos e serviços; certificações de sistemas de gestão; e certificações de pessoas. No Brasil, a organização dessas normas ficou a cargo da Associação Brasileira de Normas Técnicas – ABNT, instituição privada fundada em 1940. Na década de 1970, a Organização Internacional do Trabalho – OIT e o Centro Interamericano de Investigação e Documentação – Cinterfor desenvolveram um projeto considerado um marco nas discussões sobre o tema da certificação profissional no país. O principal propósito da proposta então em debate era o reconhecimento formal dos conhecimentos adquiridos pelos trabalhadores em suas experiências de trabalho e em processos de qualificação profissional. Nas décadas seguintes, foram colocadas em curso várias iniciativas de certificação de pessoas vinculadas, principalmente, às políticas de qualidade e produtividade. Em geral, os processos de certificação envolvem diversas fases e formas de avaliação como provas de conhecimento; testes teórico-práticos; análise de documentos relacionadas às trajetórias de formação e experiências profissionais, podendo ou não incluir etapas de formação complementar. A certificação pode ou não constituir uma exigência para atuação profissional. Em algumas ocupações, o exercício profissional em um determinado tipo de atividade pode ser vedado a quem não possui o ateste formal da expertise necessária, expresso no certificado emitido por instituição credenciada. Se na esfera do trabalho, o uso das certificações está circunscrito às normas de exercício profissional, aos acordos coletivos, às estratégias de seleção de pessoal, entre outras possibilidades no âmbito da gestão de pessoas, na perspectiva educacional o processo de certificação de conhecimentos profissionais é compreendido, principalmente, como uma estratégia para continuidade e ou conclusão dos estudos. É sob esse ponto de vista que se estrutura, por exemplo, a proposta da Rede Nacional de Certificação Profissional e Formação Inicial e Continuada (Rede Certific), uma iniciativa do Governo Federal, instituída por portaria interministerial (Portaria MEC/MTE nº 1.082, de 20.11.2009), com o objetivo de promover e orientar a oferta de programas de certificação e formação profissional, tendo as instituições da Rede Federal como entidades certificadoras e acreditadoras. A estruturação de uma proposta de certificação profissional é, portanto, perpassada por distintas lógicas: a educacional, a da competitividade mercadológica, a do trabalho em sua dimensão formadora, representando um importante desafio para instituições de educação profissional e tecnológica públicas comprometidas com a formação integral dos educandos e com o desenvolvimento dos territórios que integram. Outro desafio colocado para a estruturação de projetos voltados à certificação profissional está relacionado ao deslocamento da fundamentação do processo do conceito de qualificação profissional para a noção de competência. A certificação profissional implica uma dimensão cartorial ou jurídico-administrativa de conferência entre requisitos exigidos, estabelecidos em uma norma ou quadro de referência, e atributos apresentados, levando ao ateste, com determinado grau de certeza, das equivalências encontradas. A qualificação profissional, na sua dimensão de relação social, traduz códigos coletivos de acesso ao mercado de trabalho e às negociações a ele inerentes. Trata-se de um conceito mais tangível uma vez que se expressa em diplomas, certificados, títulos, tempos de experiência laboral, entre outros elementos que, em tese, podem corresponder a processos formativos que colaboraram para a aquisição de saberes, valores, habilidades e demais qualidades julgadas necessárias a um determinado posto de trabalho ou ocupação. A competência é uma noção fluida, que busca expressar a capacidade de conjugar diferentes saberes e outros atributos em uma situação de trabalho real na busca por soluções ante os eventos a que o trabalhador se vê exposto. A noção de competência impõe um dilema para a avaliação, uma vez que esta é um fenômeno situado e finalístico, ou seja, ela se manifesta em situações concretas na busca pelo alcance das finalidades da atividade e objetivos organizacionais. Porém, o que se tem em um processo avaliativo não é a situação de trabalho real, mas uma simulação. Mesmo em situações concretas, não é possível observar a competência em si, mas apenas alguns de seus aspectos, ingredientes ou indicadores. Além disso, como a noção de competência está vinculada à ideia de resposta a eventos, portanto, algo singular, não replicável, o que se tem como resultado da avaliação são predições. Equivale a dizer que o ateste se dá sobre qualidades profissionais, saberes e habilidades, que indicam a probabilidade de que a competência se manifeste nas situações em que for requerida. Além disso, é importante lembrar que essa noção assume destaque ante as novas formas de organização da produção, o aumento da complexidade, da incerteza, do individualismo. A noção de competência é vinculada à ideia de agregação de valor para organização e para o indivíduo (não necessariamente para o coletivo dos trabalhadores), sendo, em geral, capturada e moldada aos discursos de ampliação e manutenção da competitividade.  Todavia, o reconhecimento de competências profissionais (ou o reconhecimento de atributos que podem colaborar para um agir competente) pode, contraditoriamente, também significar o atendimento de demandas dos trabalhadores na medida em que denota a validação de aprendizagens ocorridas em suas trajetórias de vida. Ademais, impõe às instituições certificadoras a consideração à dimensão formativa da atividade de trabalho e a investigação sobre o conhecimento vivo, em movimento, manifesto no trabalho real em diálogo com o prescrito nas normas e disciplinas acadêmicas.

Caetana Juracy Rezende Silva

 

 

 


terça-feira, 19 de janeiro de 2021

INTERNACIONALIZAÇÃO

A internacionalização é considerada uma estratégia fundamental para a inserção dos países em um mundo globalizado, favorecendo, além do compartilhamento de experiências e práticas, um grande mercado de vendas de serviços, políticas educacionais e soluções para os problemas da ‘qualidade educacional’. Contudo, temos uma pesquisa incipiente no que diz respeito às influências internacionais sofridas por países periféricos como o nosso. A história da educação profissional no Brasil está vinculada ao desenvolvimento econômico e industrial do país, desde sua origem colonial, passando pelo Império e seguindo pela República. Ainda antes de 1909, momento da criação oficial das Escolas de Aprendizes e Artífices por Nilo Peçanha, já existiam pelo Brasil alguns poucos Liceus de Artes e Ofícios. Essa trajetória, embora muito bem descrita por autores como Celso Suckow da Fonseca, não reporta, de forma explícita e consistente, a influência internacional na gênese da educação profissional e tecnológica brasileira. Todavia, ao observarmos os modelos historicamente desenvolvidos na sua trajetória, encontramos pelo menos três grandes vertentes e inspirações: a França (school-based), a Alemanha e a Suíça (sistema dual) e os Estados Unidos (community colleges). O modelo estrutural de educação profissional brasileiro, mais centrado na escola e regulamentado e controlado pelo Estado, é basicamente de origem francesa. A partir da década de 1940, os setores produtivos começaram a criar suas escolas de educação profissional. O primeiro estabelecido no Brasil foi o Serviço Nacional  de Aprendizagem Industrial (SENAI), que foi altamente influenciado pelo sistema dual alemão e suíço, cuja estrutura prevê vínculos específicos entre as indústrias e suas escolas de aprendizagem. Posteriormente, com a reforma educacional de 1971, e a partir da subordinação do Brasil aos interesses estadunidenses, o país passa a sofrer influência do modelo dos community colleges, onde a educação geral e a formação profissional ocorrem durante o ensino médio. Também a instituição da Rede Federal de Educação Profissional, Científica e Tecnológica e a criação dos Institutos Federais de Educação Ciência e Tecnologia (IFs), no governo do Presidente Luís Inácio Lula da Silva, pela Lei nº 11.891, de 2008, não pode ser isolada da tendência internacional relacionada à massificação da educação superior e profissional. A alteração no panorama mundial da educação pós-secundária ocorre como consequência do que se denomina de dinâmica da massificação do ensino superior e encontra sustentação no conceito de Sistemas de Elevada Participação (High Participation Systems), onde a alta incidência de procura e matrículas brutas no ensino superior dos países tem sido determinante para o surgimento de um novo setor educacional não universitário, muiltidisciplinar, multicurricular, com envolvimento em pesquisa, que tende a integrar instituições de educação profissional na criação de novas instituições e que vem se expandindo no mundo a uma taxa de aproximadamente um por cento ao ano. Apenas três anos depois da criação dos IFs, em 2011, a Presidente Dilma Roussef lançou o Programa Ciências sem Fronteiras (CsF), que além do desafio de disponibilizar bolsas de estudo no exterior, acelerou a discussão sobre o tema da internacionalização que perpassava os antigos Centros Federais de Educação Profissional e Tecnológica (CEFETs), embora com iniciativas pontuais e pouco sistematizadas. Destacamos algumas iniciativas essenciais para se entender historicamente como esse processo tem se desenvolvido: a criação do Fórum de Relações Internacionais (FORINTER) do Conselho Nacional das Instituições da Rede Federal de Educação Profissional, Científica e Tecnológica (CONIF) em 2009, a realização do I Fórum Mundial de Educação Profissional e Tecnológica, também em 2009, em Brasília, e a parceria estabelecida com a Association of Canadian Community Colleges (ACCC), atualmente Colleges and Institutes Canada (CiCan), a partir de 2004, para constituição do Programa Mulheres Mil. Outra experiência relevante para a internacionalização da Rede são os campi em regiões fronteiriças, conhecidos como Institutos Federais na Fronteira. Essas unidades ofertam cursos cujos certificados têm validade nos países limítrofes e contribuem para diversidade e multiculturalidade das instituições. O Programa E-Tec Idiomas, desenvolvido por meio de parceria do IFSul, do IFCE e do IFRN, também foi uma ação de internacionalização que possibilitou à Rede Federal desenvolver o ensino de línguas estrangeiras nas instituições, bem como o ensino de língua portuguesa para estrangeiros, utilizando a modalidade de educação a distância (EaD). É importante destacar ainda que qualquer discussão ou projeto sobre a internacionalização da Rede Federal deve levar em conta o conceito de ‘educação profissional’. A distinção entre educação profissional, conhecida internacionalmente como vocacional (Vocational Education and Training – VET), e educação acadêmica não é exclusiva do Brasil. Mantidas as características específicas de cada país, o dualismo estrutural é um dos traços em comum no desenvolvimento dessa modalidade educacional, que, quase sempre, é vista como de segunda categoria e vinculada aos indivíduos que não tiveram capacidade de chegar às universidades. As explicações para o posicionamento estratégico da educação profissional em diferentes países encontram seus preceitos na estruturação econômica e social destes e na forma como ocorre a transição dos estudantes para o mercado de trabalho. Pode-se dizer que, no Brasil, o conceito de educação profissional adotado na Rede Federal é muito mais abrangente do que o é no mundo. Ele engloba a ideia de uma formação cidadã, ampla, que permite ao egresso uma visão crítica do mundo que o cerca. Talvez por isso se configure em fator de diferenciação e interesse por parte de seus pares internacionais. Quando olhamos comparativamente a educação profissional no mundo, percebemos que a proposta hegemônica está mais próxima da formação oferecida pelas entidades dos serviços nacionais de aprendizagem (Sistema S), na qual se supõe mais treinamento e menos formação geral e são mantidas as características do dualismo que separa a educação superior acadêmica e a educação profissional, destinando a última àqueles que supostamente não possuem condições para enfrentar o ensino superior.  Internacionalizar instituições que possuem uma institucionalidade única no mundo, com diferentes modalidades de ensino, exige sensibilizar comunidades escolares e gestores, planejar ações e estratégias, perceber potencialidades em outros países e compreender a dinâmica internacional, evitando que as cooperações interinstitucionais sejam mecanismos de transferência ou mimetizações de modelos estrangeiros.

Claudia Schiedeck Soares de Souza

 

segunda-feira, 18 de janeiro de 2021

TERRITORIALIDADE E TERRITÓRIOS EDUCATIVOS

Apesar de ser um dos fundamentos estruturantes da ação dos Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia, a questão da territorialidade é, em geral, subestimada e pouco debatida. Compreendida muitas vezes apenas em relação a espaços e limites geográficos, a territorialidade para essas instituições deve ser tratada em um sentido mais amplo. Essa noção é tributária do pensamento do geógrafo Milton Santos, que se ocupou, entre vários outros aspectos, dos usos da noção de território e os sentimentos de identidade e pertencimento. É preciso ter em mente que a missão dos Institutos Federais, como instituições públicas de ensino, pesquisa e extensão, pressupõe o compromisso da realização dessas atividades em estreita vinculação com os processos políticos, econômicos, sociais e culturais dos territórios que integram. Entre as finalidades dessas instituições está o dever de colaborar com o desenvolvimento local, regional e nacional, no sentido de um desenvolvimento soberano, sustentável e inclusivo, alcançado por meio da promoção de tecnologias sociais e da formação de profissionais capazes de produzir conhecimento e transformações no mundo do trabalho. O ideal de atuação em rede é outro ponto importante a ser considerado, uma vez que potencializa o sentido de território para os Institutos Federais e demais instituições integrantes da Rede Federal de Educação Profissional, Científica e Tecnológica. Em perspectiva ampliada, a ideia-força da territorialidade presente no projeto político-pedagógico dos Institutos Federais se aproxima em grande medida à de territórios educativos. A ideia de território educativo, por sua vez, vincula-se à concepção de educação integral e à compreensão da participação dos diferentes sujeitos nos processos educativos desenvolvidos nos diversos espaços de vida social. Na concepção dos Institutos Federais, a organização multicampi, no horizonte institucional, e a atuação em rede, no horizonte interinstitucional, deve extrapolar as funções tradicionais e caminhar na direção da consolidação de territórios educativos capazes de promover a formação integral dos educandos e de exercer um papel educador na vida dos demais sujeitos. Nessa dinâmica, os territórios interagem com os campi/instituições, recebendo sua influência e influenciando-os com sua realidade socioeconômica e sua cultura, educa e é educado. A realidade socioeconômica impacta diretamente no desempenho dos estudantes em todas as áreas e não pode ser ignorada. O planejamento em ensino, pesquisa e extensão precisa levá-la em conta no estabelecimento de um diálogo permanente com o território. Os desafios didático-pedagógicos não são resolvidos apenas a partir da sala de aula, do laboratório ou da biblioteca. Os prédios e terrenos de um campus podem ser vistos como bases de apoio, sem perder de vista a necessidade de mapear todas as organizações educacionais, culturais, de saúde, sindicais, populares, de segurança etc. e atuar na direção de uma ação educativa e protetiva envolvendo todas essas instituições, somando suas atividades específicas. As instituições de ensino são espaços privilegiados para a identificação das questões que atingem os jovens, impactando na aprendizagem. Mesmo que não caiba a elas a solução desses problemas, ao atuar como parte de um território educativo, poderá encaminhar os educandos às instituições adequadas às questões a serem enfrentadas. Por isto, é necessário um trabalho conjunto permanente, e não apenas pontual, com as demais instituições, especialmente com aquelas de educação pública integrantes do mesmo território. Não podemos esquecer que a estrutura de uma instituição da Rede Federal é um equipamento público que deve estar a serviço da sociedade. Em resumo, a noção de educação integral envolve toda a comunidade, pois uma instituição educacional não é a única que educa e não é capaz de fazê-lo sozinha. Porém, as instituições educacionais devem ser vistas como lugares privilegiados na articulação de um projeto educativo para o território: pela escuta dos sujeitos a ele pertencentes, pela construção de um currículo coerente, pelo estabelecimento de uma relação de mútua aprendizagem entre instituições de ensino e comunidade, pela formação de redes de proteção na conexão das diversas instituições sociais em uma agenda intersetorial permanente voltada ao desenvolvimento pleno da potencialidade humana dos sujeitos do território. É esse o desafio colocado para as instituições da Rede Federal que, por sua concepção, podem ter um papel protagonista nessa tarefa.

Eliezer Pacheco

EXTENSÃO

O termo extensão se encontra difundido entre as instituições de ensino e pesquisa brasileiras, ocupando um lugar de destaque na atuação dos Institutos Federais. Contudo, o conceito de extensão é controverso, sobretudo nas Instituições de Ensino Superior (IES) públicas, cujas disputas políticas acerca de suas prioridades e finalidades são permanentes. As primeiras experiências definidas como extensão surgiram na Inglaterra, em meados do século XIX, vinculadas à ideia de educação continuada. Nos Estados Unidos da América elas surgiram caracterizadas pela prestação de serviços. No Brasil, a extensão começou a aparecer nos estatutos das universidades a partir dos anos 1930. Entretanto, foi apenas entre 1960 e 1964, inspirados pelo Manifesto de Córdoba de 1918 e pelas reformas universitárias latino-americanas, que movimentos sociais, em especial jovens da União Nacional dos Estudantes (UNE), passaram a propagar a concepção de que as IES deveriam estar atentas aos problemas comunitários, engajando-se na solução de mazelas sociais. Nesse momento, os estudantes tomaram a frente e desenvolveram inúmeros projetos com caráter cultural, socializador e político. A ditadura civil-militar instituiu em 1968 uma reforma universitária, através da Lei nº 5540, tornando a extensão obrigatória em todos os estabelecimentos de ensino superior, por meio de cursos e serviços especiais à comunidade, inaugurando um período de práticas assistencialistas organizadas pelo governo autoritário. A partir do final da década de 1970, a ascensão de movimentos sociais, movimentos comunitários e religiosos, sindicais, movimento estudantil, entre tantos outros, criou as condições para a retomada da construção da democracia brasileira. Assim, o debate acadêmico sobre extensão, bastante prejudicado pela ditadura, foi retomado a partir da década de 1980. As discussões e articulações sobre extensão ganharam força com a criação do Fórum de Pró-Reitores de Extensão das Universidades Públicas Brasileiras, implantado em novembro de 1987, que definiu extensão como processo educativo, cultural e científico que articula o ensino e a pesquisa de forma indissociável e viabiliza a relação transformadora entre universidade e sociedade. Além de propor uma nova práxis educativa: a indissociabilidade ensino-pesquisa-extensão. Um dos principais marcos desse momento foi a Constituição de 1988 que, em seu artigo 207, institucionalizou a extensão, quando dispôs que “as universidades gozam de autonomia didático-científica, administrativa e de gestão financeira e patrimonial e obedecerão ao princípio da indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão". Com isso, definiu-se que esses três pilares – ensino, pesquisa e extensão – constituem as funções bases que sustentam o saber universitário. Este princípio também adentrou os Institutos Federais, estando presente na sua Lei de criação e orientando suas práticas. Em meados da década de 1990, no auge das políticas neoliberais no Brasil, professores, estudantes, técnicos administrativos e movimentos sociais, envolvidos em projetos de extensão, se organizaram no movimento extensionista, inserindo definitivamente o tema na agenda política. Em grande parte das IES públicas brasileiras surgiram projetos e laboratórios de extensão, uns com mais e outros com menos institucionalidade, mas todos comprometidos com o debate acerca da qualificação, de seu reconhecimento acadêmico e, sobretudo, do perfil dos saberes produzido por estas IES. Eram projetos sobre reforma agrária e urbana, saúde pública, educação popular, cultura, lazer e outros temas, a partir da relação com setores da sociedade civil. Esse movimento criou, ainda que de maneira periférica, canais de diálogo entre os movimentos sociais e as IES. Movimentos como os dos trabalhadores rurais sem-terra, os por moradia, os culturais, os ambientalistas e os da saúde, compartilham seus conhecimentos com o mundo acadêmico, absorvem novos saberes e, o mais importante, produzem novos conhecimentos a partir da relação dialética estabelecida. Com isso, os movimentos sociais inseriram suas demandas na pauta das IES, influenciando o ensino e a pesquisa. Da mesma forma, também inseriram as IES em suas pautas, destacando-se a reivindicação pela democratização do acesso e a necessidade de soluções para suas demandas objetivas. A entrada da extensão na agenda política dos dirigentes das IES explicitou uma série de contradições, destacando o caráter elitista. A principal disputa colocada na arena política encontra-se em qual o público deve ser prioritariamente “atendido”, expondo o conflito em torno da concepção de extensão e, principalmente, sobre a visão do papel que as IES públicas devem cumprir na sociedade brasileira. Esta disputa também está presente no cotidiano dos Institutos Federais, que estão forjando suas identidades. Há uma vertente hegemônica dentro das burocracias acadêmicas, que compreende a educação continuada, através dos cursos de difusão, como o principal modelo de extensão a ser perseguido, destacando seu potencial em auxiliar na solução de crises orçamentárias que as IES estejam inseridas. Esse modelo encontra nas fundações de apoio sua grande base política, técnica e administrativa. Nesse modelo, as IES estariam se abrindo para as demandas externas a ela, difundindo seus conhecimentos e ao mesmo tempo se “atualizando” com o conhecimento advindo do “mercado”, formando profissionais mais competitivos para o mundo do trabalho e pesquisas aplicadas que, se patenteadas, também se tornam fontes de recursos para estas instituições, assim como para as empresas patrocinadoras. No entanto, há outra vertente, mais alinhada aos processos que deram origem aos Institutos Federais e, em alguma medida, representada na sua Lei de criação. Ela é fruto do movimento extensionista e encontra-se respaldada por correntes políticas e acadêmicas progressistas, que, no entanto, são minoritárias nas burocracias das IES. Ela defende o cumprimento do papel social das IES públicas, atendendo aos interesses públicos, aberta aos interesses de todos os setores da sociedade e não somente do capital. Nesta perspectiva, a extensão desponta como um dos principais mecanismos de democratização, não apenas do acesso ao conhecimento, mas também da produção do conhecimento, por meio de projetos e programas, prioritariamente interdisciplinares. Desse modo, demandas que não interessam ao capital devem ser alvo de maior ou igual atenção por parte das IES. Embora as duas concepções não sejam antagônicas e ambos os modelos apresentem respostas às demandas sociais, os interesses do capital tendem a se impor. Dessa maneira, pode-se verificar que as práticas de extensão realizadas nas IES, em geral, são hegemonizadas pelo interesse do capital, tornando o segundo modelo marginal, sobretudo nas IES mais antigas e mais prestigiadas. Entretanto, a crescente cobrança pelo cumprimento do papel social das IES e a importante expansão do ensino público entre 2003 e 2015 atribuíram nova fisionomia à extensão. Neste processo, as novas universidades e, principalmente, os novos Institutos Federais deram maior centralidade à extensão e priorizaram, ao menos em um primeiro momento, o estreitamento das relações entre os conhecimentos acadêmicos e comunitários, contemplando os interesses de setores, historicamente, alijados destes processos formais. 

Márcio Rogério Olivato Pozzer

MAKARENKO, ANTON SEMYONOVICH

Educar crianças em tempos difíceis. Esse é o mote inicial para trazer Makarenko, grande pedagogo nascido na Ucrânia em 1888, às reflexões sobre desafios e possibilidades do trabalho pedagógico nos Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia. Indagações e dificuldades encontradas por esse grande educador frente à educação de adolescentes e jovens em situação de desamparo social, abandonados, alguns com histórico de delinquência, guardam semelhanças, mesmo considerando a relatividade histórica e cultural, com as apresentadas hoje pelas escolas brasileiras.  Dúvidas sobre como educar para as quais Makarenko buscou respostas ainda se fazem presentes não só no Brasil, especialmente como formar pessoas menos individualistas, colaboradoras, solidárias, responsáveis pelo bem-estar coletivo, capazes de saber a sério o significado de grupo, do viver em sociedade. Da mesma maneira, dúvidas sobre como saber se a tarefa de educar se faz acompanhar de muita complacência ou sobre o equilíbrio a ser guardado entre liberdades e limites. O fato é que Makarenko conseguiu ser reconhecido mundialmente pelos êxitos alcançados no seu trabalho pedagógico, apesar dos desafios e dificuldades decorrentes das grandes transformações históricas do fim do século 19 e do começo do século 20, revolvidos por movimentos revolucionários, pela Primeira Guerra Mundial e pela revolução de outubro de 1917 da qual emergiu a União Soviética. Para a obra educacional à qual Makarenko se consagrou, especificamente, os desafios e dificuldades advindos da existência no início da década de 1920, na Rússia, de sete milhões de crianças de rua, sobreviventes à guerra civil. Interessados no sucesso dessa revolução se perguntavam sobre o tipo de ser humano a ser formado para viver na nova sociedade e no novo mundo. Dentre os consensos, a importância de garantir a formação de pessoas com capacidade de dirigir a própria vida e de contribuir com o desenvolvimento do país, de participar da organização coletiva e democrática da nova sociedade a ser construída, o que, sem dúvida, significava dispêndio de muita inteligência, disciplina e trabalho. Para tanto, Makarenko se engajou com audácia e coragem na criação de um sistema pedagógico e de conceitos educacionais inovadores. Com isso, destruiu cânones estereotipados e tradicionais de educação por meio de uma experiência social e pedagógica concreta e fora do comum, cujo alicerce consistia na organização de uma vida coletivista socialmente significativa para seus alunos adolescentes e jovens. Ele partiu do pressuposto de que a fonte de muitos problemas educacionais se encontrava na presunção da responsabilidade unilateral dos educadores sobre os alunos, da influência dos mais velhos sobre os mais jovens, da educação como assimilação de experiência social pronta, da aprendizagem como consumo de bens espirituais e materiais. Para tanto, apoiou-se em conhecimentos e reflexão pedagógica desenvolvidos na sua trajetória de formação e profissional. Aos 17 anos, já havia concluído o curso de Magistério. No Instituto de Professores de Poltava, cidade da Ucrânia Central, teve seu trabalho de conclusão de curso superior sobre A Crise da Pedagogia Moderna aprovado com distinção. O princípio educativo do trabalho – que é também um conceito basilar da concepção pedagógica dos Institutos Federais, no Brasil  deu o norte para o desenvolvimento da sua proposta educacional. Para tanto, Makarenko se referenciou nas leituras de Marx. Entendia-o como a base estruturante da pedagogia centrada no trabalho cooperativo, na cultura tecnológica e no aluno como sujeito social e histórico participante da elaboração de uma sociedade fraterna. Na sua compreensão, a formação profissional do aluno se faz na vida real e isso exigia uma metodologia de educação criativa coletiva, tendo em vista tornar o aluno um participante ativo na vida escolar. Do início ao fim dos estudos, o educando deveria aprender essa criatividade social coletiva. Coletiva porque planejada, elaborada, executada e discutida por educandos e educadores, companheiros mais novos e mais velhos, em um cuidado comum. Criativa, porque, ao planejar e implementar o que é projetado, avaliando o que foi feito e aprendendo lições para o futuro, todos procuram as melhores formas, métodos, formas de resolver problemas práticos vitais. Essa compreensão deu a Makarenko o caminho para o desenvolvimento dos seus alunos em três aspectos fundamentais: o primeiro, de ordem cognitiva, se refere à cosmovisão, aos conhecimentos, opiniões, crenças, ideais; o segundo, à vontade emocional formada por sentimentos, aspirações, interesses, necessidades elevadas; o terceiro, de caráter ativo, concerne às habilidades, aos hábitos, à criatividade, aos traços socialmente necessários. Makarenko dirigiu escolas, em regime de internato, situadas em zona rural, destinadas aos órfãos da guerra civil, muitos deles com histórico de infração, estruturadas como comunas cooperativas. Sua mais marcante experiência se deu na Colônia Gorki, de 1920 a 1928. Na obra Poema Pedagógico, ele a relata. De 1928 a 1936, dedicou-se a outro desafio também muito importante, a direção da Comuna Dzerjinski. Registrou suas ideias e vivências em diversas produções escritas, dentre as quais, além da citada acima, O Livro dos Pais, Conferências sobre Educação Infantil e As Bandeiras na Torre são as mais conhecidas dos educadores brasileiros. Seus princípios e convicções serviram e servem de inspiração a diferentes correntes do pensamento pedagógico. Além de terem passado pelo crivo prático, possibilitaram transformar centenas de adolescentes e jovens marginalizados em cidadãos, repensar o papel da escola e da família e a elaboração das bases da pedagogia social, institucional e mútua. As obras de Makarenko foram traduzidas para quase todas as línguas dos povos do mundo. Em resumo, seus princípios pedagógicos são os seguintes: a) a educação não é uma transferência aleatória de experiências acumuladas, mas a organização criativa e coletiva da vida e das atividades comuns de educandos e adultos; b) a organização escolar tem sua base no coletivo e esse não significa massificação e despersonalização do aluno, mas, antes, a estrutura estimuladora do seu desenvolvimento individual; c) a influência decisiva do coletivo sobre a formação individual precisa ser exercida por relações socialmente significativas e não puramente emocionais; d) a vida comunitária se constrói na preocupação comum, na superação das dificuldades comuns, no compromisso com o trabalho comum; e) a sobrevivência de cada um depende do trabalho de todos, da solidariedade, da preocupação com o outro; f) cada educando tem seu direito de opinar e se manifestar e de preservar sua individualidade; g) a relação entre o mundo exterior e interior à escola é indissociável, por isso, a família deve ter participação na escola; h) o educando precisa viver a realidade concreta, ter contato com a sociedade e com a natureza, participar das decisões sociais; i) a forma de organizar o coletivo deve decorrer das necessidades mesmas do coletivo; j) normas e decisões não são predeterminadas; k) o primeiro e o último voto devem ser sempre dos alunos; l) o papel de líder de cada equipe deve ser assumido por todos de maneira rotativa, assim se formam lideranças; m) cada educando precisa ter total clareza sobre suas responsabilidades; n) o trabalho manual deve ser assumido por todos; o) a disciplina é fundamental para que a vida em comunidade dê certo; ela não é um fim em si mesmo; p) a aprendizagem deve ocorrer sem coação, guardando unidade entre respeito e exigência; q) não está descartada a possibilidade de punição caso o coletivo assim o decida com base em análise concreta e participativa da situação em questão; r) a cada novo aluno que chega à escola, é preciso recebê-lo com este dizer: “Não queremos saber coisas ruins sobre você. Uma nova vida começa!"

Lucília Regina de Souza Machado

sábado, 16 de janeiro de 2021

INSTITUTOS FEDERAIS DE EDUCAÇÃO CIÊNCIA E TECNOLOGIA

A Lei nº.11.892, de 29 de dezembro de 2008, instituiu a Rede Federal de Educação Profissional, Científica e Tecnológica e criou os Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia. O Governo Federal, por meio do Ministério de Educação (MEC), criou um modelo institucional absolutamente inovador em termos de proposta político-pedagógica. Essas instituições têm suas bases em um conceito de educação profissional e tecnológica sem similar em outro país. São 38 Institutos, com mais de 600 campi espalhados por todo o território nacional, além de várias unidades avançadas, atuando em cursos de formação inicial e continuada; técnicos de nível médio, preferencialmente na forma integrada com o ensino médio; graduações (licenciaturas, bacharelados e cursos superiores de tecnologia); e pós-graduações (especializações, mestrados e doutorados profissionais). A organização pedagógica verticalizada, da educação básica à superior, é um dos fundamentos dos Institutos Federais. Ela permite aos docentes atuarem em diferentes níveis do ensino/pesquisa/extensão e aos discentes compartilharem espaços de aprendizagem, possibilitando o delineamento de trajetórias formativas da formação inicial ao doutoramento. A estrutura multicampi e a clara definição do território de abrangência das ações dos Institutos Federais afirmam, na missão dessas instituições, o compromisso de intervenção em suas respectivas regiões, identificando problemas e criando soluções técnicas e tecnológicas para o desenvolvimento sustentável com inclusão social. Os Institutos Federais constituem espaços fundamentais na construção dos caminhos visando o desenvolvimento local e regional. Para tanto, devem ir além da compreensão da educação profissional e tecnológica como mera instrumentalização de pessoas para ocupações determinadas pelo mercado. Na proposta dos Institutos Federais, é indispensável agregar a formação acadêmica à preparação para o mundo do trabalho, compreendendo o trabalho em seus sentidos histórico e ontológico e discutindo os princípios das tecnologias a ele concernentes. A concepção dos Institutos Federais busca superar a matriz universidade/escola técnica, que corresponde a uma compreensão hierarquizada do conhecimento, equivalente à estratificação das classes sociais: universidade para as classes dominantes e escola técnica para os trabalhadores. Os Institutos Federais são uma das mais importantes políticas educacionais públicas de nossa história. Sua originalidade, sua qualidade e capilaridade por todo o território nacional os tornam algo singular na educação brasileira. Além disso, o ousado ideal proposto para essas instituições implica o estabelecimento de estruturas democráticas com ampla autonomia, com eleições diretas, paritárias e uninominais dos dirigentes; a atuação em rede com fundamento em uma concepção político-pedagógica compartilhada, respeitadas as diferenças das várias unidades, mas sem perder a identidade comum. Essa institucionalidade sem precedentes impõe um desafio gigantesco, o de estabelecer e consolidar uma nova referência educacional. A busca da singularidade, do ineditismo é o que pode assegurar a permanência dessa iniciativa ante as concepções e visões mundo hostis a todas instituições públicas, especialmente as de educação, ciência, tecnologia e cultura. O compromisso com a formação humana integral em todos os níveis e modalidades educacionais é o elemento central desse projeto educacional inovador. Destaca-se nesse aspecto os cursos de educação profissional técnica de nível médio integrados com o ensino médio, inclusive na modalidade da educação de jovens e adultos como desenvolvidos no Proeja. A formação integral, omnilateral, é o princípio fundante dos Institutos Federais e deve ser compreendida para além do trabalho de organização pedagógica dos cursos técnicos integrados com o ensino médio. A formação integral é um princípio válido para todos os cursos, independentemente do nível, modalidade ou forma de oferta, traduzindo uma concepção de homem e de sociedade que recusa a orientação da escola burguesa, na qual a educação geral e de qualidade se destina às elites e a educação profissional, reduzida ao caráter prático-utilitária, aos trabalhadores, em uma reprodução da sociedade de classes. Além disso, o ensino, a pesquisa e a extensão devem ser desenvolvidos de forma indissociável também em cursos da educação básica. A crença acadêmica de que pesquisa e extensão são prerrogativas da educação superior, além de um equívoco pedagógico, revela o preconceito que separa saber acadêmico de saber popular, estabelecendo uma hierarquia de saberes correspondente à hierarquia da sociedade de classes. Outra singularidade a ser desenvolvida e consolidada é a atuação em rede, algo inédito na estrutura educacional brasileira, onde as instituições públicas, no máximo, estabelecem colaborações bilaterais, muito raramente envolvendo várias instituições. O trabalho em rede permite a formação de uma identidade única em todo o território nacional, sustentada na orientação por um projeto político-pedagógicos em comum. Os Institutos representam a utopia de uma educação progressista, sendo notável que a significativa expansão no número de instituições tenha sido acompanhada da manutenção da qualidade no conjunto da rede. Os Institutos Federais, instituições de ensino públicas, democráticas, gratuitas e de qualidade, estão entre as melhores escolas do país e do mundo. Defender essas instituições é defender que este país tenha um presente e um futuro com escolas públicas de qualidade para os trabalhadores e seus filhos.

Eliezer Pacheco

 

sexta-feira, 15 de janeiro de 2021

TRABALHO COMO PRINCÍPIO EDUCATIVO, O

O surgimento e o desenvolvimento da sociedade humana estão diretamente ligados ao trabalho do homem. É por meio do trabalho que o homem produz os objetos e bens materiais necessários à sua sobrevivência, pois antes de se dedicar a qualquer atividade ele necessita comer, beber, vestir-se, morar, etc. O trabalho significa o processo de transformação de um objeto determinado em um produto capaz de satisfazer as necessidades humanas. Ao contrário dos animais que se adaptam passivamente ao meio natural, o ser humano age ativamente sobre este, transformando-o em bens materiais necessários a sua existência. Esse processo de produção pressupõe a utilização de instrumentos produzidos por ele. A fabricação de instrumentos é o aspecto fundamental que distingue o humano dos outros animais. A evolução só foi possível quando os seres bípedes puderem liberar as mãos para o trabalho, as quais puderam ser utilizadas para a produção de instrumentos como machado de pedra, faca etc. A liberdade das mãos combinada a um cérebro mais desenvolvido originou, por meio do trabalho, um ser que fabrica instrumentos e que desenvolve capacidade para projetar e antecipar o resultado de sua própria ação, um ser que pensa. O trabalho não é uma maldição divina (“comerás o pão com o suor do teu rosto” Gênesis, 3:19), mas a condição objetiva da existência e evolução humana. O homem e a sociedade não escolhem, por sua própria vontade, os instrumentos de trabalho. Cada nova geração se depara com os instrumentos/ferramentas criados pelas gerações anteriores e deles se serve aperfeiçoando-os e modificando-os. Do arado ao trator e destes às modernas colheitadeiras informatizadas é uma trajetória que passa por muitas gerações, num processo de desenvolvimento tecnológico e do conhecimento. Tudo motivado pela necessidade de produzir o seu sustento e o de seus semelhantes, devido aos processos de crescimento populacional. Da mesma forma, os instrumentos de trabalho, a tecnologia e o conhecimento se desenvolvem sob certa ordem de sucessão. A humanidade não poderia, por exemplo, passar diretamente do cata-vento à produção da energia atômica. Cada nova tecnologia, aperfeiçoamento ou conhecimento está condicionado à acumulação gradual da experiência produtiva, à obtenção de certos hábitos de trabalho. O trabalho e a produção são o motor do desenvolvimento histórico da humanidade. A compreensão do trabalho como princípio educativo é o elemento básico para a organização curricular, definição de conteúdos ou atividades e estabelecimento de metodologias nos Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia (IF). A afirmação do trabalho como princípio educativo corresponde à concepção de que o os seres humanos são produtores da realidade em que vivem, são capazes de reivindicar essa realidade para si e de atuar para sua transformação. Assume-se, pois, que os seres humanos são sujeitos de sua história e de sua realidade. O trabalho é a primeira mediação entre o homem e a realidade material e social. Ao prover o seu sustento, o homem estabelece relações com a natureza e a sociedade, aprendendo a conhecê-las, a dominá-las e a transformá-las. Na busca da sobrevivência ele constrói instrumentos, cria novas tecnologias e desenvolve as forças produtivas fazendo avançar os processos de desenvolvimento histórico. Na concepção do filósofo italiano Antonio Gramsci, o trabalho é definido como atividade prática do homem. Gramsci compreendia que uma educação fundamentada na atividade prática cria uma visão do mundo libertada de toda magia, de toda feitiçaria e contribui para uma interpretação histórica, de movimento, do mundo, fornecendo o ponto de partida para o desenvolvimento de uma concepção histórica e dialética. Para ele, o trabalho é a mediação concreta, efetiva entre teoria e prática. Esse é o fio condutor do processo civilizatório. Entretanto, o homem somente será sujeito desse processo se tiver consciência das leis que o regem e ao agir sobre este. As relações entre homem, natureza e sociedade se estabelecem em um movimento dialético no qual todos influenciam e sofrem influência, sendo o homem, no sentido coletivo, o elemento central. A concepção do trabalho como princípio educativo pressupõe, também, uma relação indissociável entre trabalho, ciência, tecnologia e cultura. A cultura estabelece a síntese entre a formação geral e a formação específica, permitindo a compreensão do momento histórico e dos meios de fazê-lo avançar no sentido do progresso. Essa é a dimensão ideológica que nos transforma em sujeitos da história, com visão crítica e compromisso com o avanço progressista da sociedade. Logo, formação específica, formação geral e cultura são pontos indissociáveis de uma formação integral. O trabalho nos forma e nos desafia a encontrar novas soluções técnicas e tecnológicas, mas também somos desafiados, cotidianamente, a transformá-lo em um instrumento de libertação.

Eliezer Pacheco e Caetana Silva


 

 

quinta-feira, 14 de janeiro de 2021

GRAMSCI, ANTONIO

O autor tem presença assídua e obrigatória em textos sobre educação, sobretudo quando se trata de educação profissional e tecnológica. A concepção pedagógica originária dos Institutos Federais forjou-se apoiada em seu fecundo pensamento pedagógico, cujo eixo passa pela vinculação entre escola, pedagogia e política e a reflexão sobre como a educação pode ensejar a emancipação humana. Nascido na Sardenha, ilha do Mediterrâneo, em 1891, de origem modesta, Gramsci se fez como educador social, filósofo, jornalista, crítico literário e político. Nessa última condição, foi deputado comunista pelo distrito do Vêneto, região do nordeste da Itália, mandato interrompido ao ser condenado à prisão, em 1926, pelo ditador fascista Benito Mussolini. Gramsci, de saúde frágil, teve vida abreviada pelas condições carcerárias inumanas lhe impostas. Uma campanha internacional conseguiu sua soltura em 1937, mas em condições físicas tão frágeis que veio a falecer, aos 46 anos, dias após ser libertado. Extensa e respeitada obra política e pedagógica faz parte do seu legado à humanidade: os inúmeros artigos jornalísticos anteriores à prisão, as Cartas do Cárcere e os 29 cadernos sobre temas diversos, posteriormente publicados em seis volumes. Compreendia que a marca social de uma escola não se define pelo modo de ensinar, mas pelo estrato social ao qual se destina e se prepara os estudantes para o exercício de função de direção ou instrumental. Suas propostas para a organização da cultura e da escola ganham significado se compreendidas como estratégias para liberar as camadas populares das condições estruturais de subalternidade. É nesse sentido que a escola é vista por ele como instrumento fundamental de cultura, essencial à construção de valores e novas relações de consenso, tendo em vista um novo sistema econômico e social. Suas referências vinham, de um lado, do materialismo histórico e das concepções e experiências desenvolvidas na educação socialista soviética e, de outro, da estrutura escolar italiana de natureza classista, discriminatória e reprodutora das desigualdades sociais. Essa, a escola italiana, fundada sobre uma estrutura dual: para o povo, escola de instrumentalização para o trabalho, para a submissão e resignação, carente de ciência e cultura geral; para a elite, escola de conteúdos clássicos e preparatórios para o ensino superior. Em ambas, conteúdos antiquados, métodos paternalistas e mnemônicos. Gramsci via no projeto educacional fascista, representado pela chamada Reforma Gentile (1922-1023), a instrumentalização da escola para a consolidação do fascismo por meio da imposição da ordem, disciplina e obediência ao Estado. Na sua leitura, essa reforma educacional não seria capaz de solucionar a crise da escola, já que essa era parte da crise social mais ampla e profunda de desintegração nacional vivida pelo país, dadas as contradições sociais e regionais. A escola estava em crise, além disso, por se mostrar incompetente para atender as novas demandas educacionais e culturais do mundo moderno. Isso porque não percebia o fosso que se abrira entre a escola e a vida e o anacronismo do princípio educativo que até, então, dava prestígio social, o de orientação humanista de cultura geral fundada na tradição greco-romana. Mudanças sociais, econômicas, na moralidade e no clima cultural em vigor requeriam outro princípio educativo. Para completar, a reforma de Gentile deu continuidade à ruptura entre a escola elementar e a média e entre essa e a superior e nada fez para responder à exclusão educacional e cultural. Para Gramsci, a solução da crise da escola requeria a mudança do projeto pedagógico no sentido de formar o homem à altura de sua época, não isolar a escola do mundo real, da vida concreta, acolher os avanços da ciência e da técnica. Para tanto, seria necessário criar instituições escolares e organismos de cultura especializados e diferenciados, entendendo o papel importante das humanidades na formação humana. A educação técnica, segundo Gramsci, também inclui os instrumentos intelectuais e o conhecimento filosófico na mediação entre ciência e trabalho. Ou seja, a unidade entre as ciências humanas e as da natureza na perspectiva da educação integral. É nesse sentido que ele decifrou o novo princípio educativo: a introdução do trabalho na escola e das questões éticas, políticas, culturais e técnicas daí derivadas como forma de dar densidade cultural e científica às atividades práticas, contribuir para a superação da cisão entre educação e vida concreta. Refere-se, assim, ao princípio unitário do trabalho, ao entendimento teórico-prático de como os homens participam da vida da natureza e a transformam se transformando, dialeticamente, nesse processo metabólico. Gramsci qualifica essa proposta como novo humanismo, aquele que se assenta no domínio pelo homem da técnica com base na cultura científica e no discernimento político, necessário ao desenvolvimento da capacidade de organização e de construção de uma nova sociedade e de um novo homem. O conceito gramsciano de escola unitária advém desse diagnóstico. Voltada ao fortalecimento da unidade entre trabalho manual e intelectual, extensiva a todos, a escola unitária se define como de cultura geral e formativa, aberta a todos os campos necessários ao desenvolvimento integral do estudante e de preparação para o momento da sua escolha profissional. Essa se daria depois do alcance pelo estudante de certo grau de maturidade, capacidade, criação intelectual e prática, autonomia na orientação e na iniciativa. A finalidade da escola unitária seria de formá-lo como uma pessoa capaz de, autonomamente, pensar e estudar, mas também de dirigir ou de controlar quem dirige. Na sua visão, a formação de um novo tipo de intelectual, com concepção de vida superior e espírito de construtor. Gramsci tem em vista a educação das classes populares para o papel de direção na sociedade. Não se trata, portanto, de um projeto educativo para indivíduos singulares, mas para o homem-coletivo, a classe. Assim, a conquista individual desse tipo de personalidade demandaria adquirir consciência dessas relações sociais e de que a mudança da própria personalidade passaria pela modificação dessas mesmas relações. Sobre a escola profissional, essa também precisaria fazer com que a cultura por ela desenvolvida fosse também educativa, fundada em ideias gerais, não ser só prática e manual. Gramsci entende tanto a escola unitária quanto a profissional como instrumentos fundamentais para a reforma cultural e moral da sociedade e a construção da hegemonia da classe trabalhadora, a direção ancorada no consenso. Para isso não cabe à direção pedagógica provocar facilidades, mas levar o estudante à compreensão do meio, de seu próprio esforço, de sua participação e da disciplina necessária ao desenvolvimento de sua autonomia e capacidade de transformar a sociedade.

 Lucília Regina de Souza Machado

 

 

PISTRAK, MOISEY MIKHAYLOVICH

Professores, gestores e estudantes dos Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia, assim como todos aqueles interessados em conhecer iniciativas pedagógicas dignas de destaque pela sua importância social e relevância teórica não podem deixar de ler e discutir os Fundamentos da Escola do Trabalho: Uma Pedagogia Social, livro inicialmente publicado em 1924, por meio do qual Pistrak registra e analisa as bases teóricas e práticas da Escola-Comuna Experimental e Demonstrativa L. N. Lepeshinskiy. Doutor em Ciências Pedagógicas, sob a orientação do Comissariado Nacional de Educação (NarKomPros), órgão coordenador da política educacional, criado logo após o triunfo da Revolução Russa, Pistrak dirigiu com pioneirismo essa escola-comuna de 1918 a 1924. No contexto das experimentações pedagógicas soviéticas da época, a escola é uma comuna, um organismo ao qual se associam membros de uma coletividade escolar. Inserida nas redes sociais e econômicas próximas, é também chamada de Escola Única do Trabalho. Mista, compreendia um núcleo comum destinado aos alunos de oito a dezessete anos de idade e um jardim de infância para crianças a partir dos seis anos. Voltada para a formação do sentimento de responsabilidade pessoal e da noção de interesse geral, caracterizava-se pelo grande apelo à educação da liberdade de pensamento e ação. Nesses termos, funcionava sem métodos coercitivos. Orientada pelo trabalho como princípio educativo, não tinha finalidade profissionalizante. Os pilares das escolas-comuna eram, portanto, o trabalho, a auto-organização ou autogestão e a realidade ou momento atual vivenciado pelo país. Pistrak é o organizador do livro coletivo denominado A Escola Comuna, que traz uma importante documentação histórica sobre as lidas dos pioneiros da educação da Revolução Russa de 1917 na criação do novo sistema educacional. Para todos aqueles que, sendo professores, gestores e estudantes, buscam o sentido de uma nova forma escolar, de como construir uma educação engajada com os ideais da formação omnilateral do ser humano e da transformação social, as contribuições de Pistrak oferecem acúmulos valiosos tanto práticos quanto teóricos. Ele é também autor do livro Ensaios Sobre a Escola Politécnica, publicado, inicialmente, em 1929. Em 1931, passou a trabalhar no Instituto de Pedagogia do Norte do Cáucaso e, em 1936, a dirigir o Instituto Central de Pesquisa Científica de Pedagogia. Pistrak nasceu em 1888 em Kamianets-Podilskyi, uma pequena e antiga cidade, atualmente integrante da Ucrânia. Faleceu aos 49 anos de idade, em 1937, tendo deixado um importante legado para repensar e reformar a escola. Para ele, a questão pedagógica ou o como se ensina e educa é uma questão política no sentido pleno, não apenas uma questão técnica. Buscou traduzir, no plano da educação, o ponto de vista das lutas pela emancipação dos trabalhadores e das decisões estratégicas pedagógicas e institucionais dos primeiros anos da jovem União Soviética. Enfrentou, também, o desafio de contribuir para pôr fim ao despotismo da escola czarista, sua fabricação de hierarquia de classes e elitismo. Assumiu a tarefa de colaborar na criação de um novo sistema educacional apto a forjar uma nova mentalidade, uma nova ética escolar num contexto de grande escassez de recursos materiais, de professores e de crise quase permanente provocada pelas hostilidades das forças conservadoras. Nas obras de Pistrak, seja como fundamentação teórica ou nas suas explanações de práticas, ressaltam-se três dimensões importantes e originais do trabalho pedagógico desenvolvido: a relação entre a escola e o trabalho, a auto-organização da escola-comuna e o planejamento e organização do ensino com base do sistema dos complexos. Todas as três decorrem do conceito de trabalho como princípio educativo, assim compreendido como parte integrante do currículo e expediente do processo de aprendizagem, como elemento crucial da auto-organização escolar, da participação dos membros do coletivo na sustentabilidade escolar e na relação com a comunidade do entorno por meio de ações concretas e diretas de colaboração. Pistrak se ocupa, nas suas análises e elucidações de atividades concretas, do sistema dos complexos como motor de transformações pedagógicas. Proposto em 1922 pelo Comitê Científico do Estado (Gous) às escolas, tem sido interpretado como estratégia precursora da organização curricular interdisciplinar. Porém, para além do necessário amálgama de conteúdos disciplinares a serviço das aprendizagens, da organização do ensino por meio de temas socialmente significativos, esse sistema representa uma forma de estruturar todo o trabalho da escola coerentemente com o método dialético de interpretação e transformação da realidade. O ensino é organizado em torno da noção de trabalho definida como processo originário de relações sociais mediante o qual se entrelaçam transformações na natureza e no homem e que permite estudar cada objeto no contexto da sua realidade dinâmica e a partir de diversos pontos de vista. Com isso se favorecem a inventividade e o espírito crítico dos educandos, sensibilizando-os com respeito às relações com a natureza e com os demais semelhantes, de forma a considerar formas de trabalho, princípios que as regem e como essas são constituídas e engendradas socialmente. Trata-se de uma pedagogia global que educa a todos, educandos e educadores, num mesmo movimento de intervenção e transformação social. Ano após ano e na medida da necessidade de aprofundar e ampliar os temas, são introduzidos novas ferramentas conceituais e tecnológicas para assimilação e utilização não apensas em salas de aula, mas em todos os outros espaços do trabalho pedagógico, dos seus vínculos com as várias dimensões da vida concreta. Para Pistrak, os conteúdos e métodos de ensino devem oferecer princípios que tornem possível uma avaliação moral da condição humana e instrumentos para a luta pela superação dos obstáculos à emancipação social. Nesse sentido, eles devem ser vivos e concretos, ligados de forma indissolúvel com as experiências de vida dos alunos e com as exigências históricas da sociedade presente. Com o princípio do politecnismo, vinculado ao objetivo do desenvolvimento omnilateral dos educandos, busca articular o conhecimento científico e técnico com a utilização prática de múltiplas ferramentas, de forma a estreitar as relações entre planejamento e execução, gestão e auto-organização escolar, aprendizado da convivência, da cooperação e da liderança, levando-se em conta os contextos dos principais ramos da produção social. Sem dúvida, Pistrak nos oferece contribuições muito relevantes para se pensar nos dias de hoje as transformações necessárias a serem realizadas nas escolas e no trabalho pedagógico.

 

Lucília Regina de Souza Machado

 

REDE FEDERAL DE EDUCAÇÃO PROFISSIONAL, CIENTÍFICA E TECNOLÓGICA

A Rede Federal de Educação Profissional, Científica e Tecnológica formou-se em 2008, por meio da integração de um conjunto de instituições vinculadas ao antigo sistema federal de educação profissional e pelas novas unidades que já vinham sendo estruturadas, desde 2005, pelo Plano de Expansão da Rede Federal. Apesar dessa nova institucionalidade instituída em 2008, a rede faz parte de uma história centenária. Seus antecedentes remetem às 19 Escolas de Aprendizes Artífices criadas pelo Decreto nº 7.566/1909 e inauguradas no ano de 1910. Essas instituições foram distribuídas pelas capitais de 18 Estados brasileiros, além de uma unidade na cidade de Campos, no Rio de Janeiro. A única unidade federativa que não recebeu uma escola foi o Rio Grande do Sul. Ali já estava instalado o Instituto Técnico Profissional Parobé, o qual também passou a contar com subsídios federais em 1911. De certa forma, essas escolas traduziram em medidas educacionais o pensamento industrialista daquele momento e a própria expectativa de modernizar o país. Vinculadas desde a sua criação ao Ministério dos Negócios da Agricultura, Indústria e Comércio, as Escolas de Aprendizes Artífices ficaram, a partir de 1930, sob responsabilidade do recém-fundado Ministério da Educação e Saúde Pública. Dois anos depois, foram transformadas pela Lei nº 378 em Liceus Industriais, diversificando os ramos e graus dos cursos ofertados. Na década de 1940, o conjunto de leis conhecido como Reforma Capanema definiu que a rede federal de estabelecimentos de ensino industrial seria formada pelas escolas técnicas, escolas industriais, escolas artesanais e escolas de aprendizagem (Lei nº 4.127/1942). Os cursos foram divididos em dois níveis: (a) o básico, direcionado à formação mais elementar do trabalhador manual e abarcando os cursos industriais, e (b) o ensino profissional de nível médio, abrindo a possibilidade de diversificar a oferta educativa. O primeiro, com duração de quatro anos, abarcava os cursos industriais e atendia indivíduos com o ensino primário completo (atual primeiro ciclo ensino fundamental). Já os cursos técnicos requisitavam a conclusão do curso ginasial (correspondente, na atualidade, às séries finais do ensino fundamental), equivaliam ao ensino médio e passaram a dar a possibilidade, aos seus egressos, de pleitear uma vaga no ensino superior, desde que em áreas afins à cursada. O Decreto nº 47.038 transformou, em 1959, as unidades da rede federal em autarquias com autonomia didática, administrativa e financeira subordinadas ao Ministério da Educação e Cultura. Naquele momento, a rede era composta por 23 unidades, ou seja, ao longo de 50 anos de história, foram fundados quatro novos estabelecimentos (duas no Rio de Janeiro, uma no Rio Grande do Sul e outra em Minas Gerais). Em período mais recente, cabe mencionar a Lei nº 8.948/1994, que dispôs sobre a instituição do Sistema Nacional de Educação Tecnológica. Por um lado, as Escolas Técnicas e as Escolas Agrotécnicas Federais foram gradualmente transformadas em Centros Federais de Educação Tecnológica (Cefet). Até então, somente as escolas técnicas de Minas Gerais, Rio de Janeiro e Paraná haviam recebido tal denominação, quando, em 1978, somaram às suas funções a formação de engenheiros de operação e tecnólogos. Por outro, o Governo Federal ficou impedido de criar novas instituições de educação profissional, a não ser em parceria com outros entes federativos (como Estados, municípios ou Distrito Federal), com o setor produtivo ou com organizações não-governamentais. Ficaria a  cargo desses parceiros tanto a manutenção quanto a gestão das novas unidades de ensino. O ano de 2005 foi um divisor de águas na história da educação profissional brasileira, reestabelecendo o compromisso da União com a ampliação do acesso da população a essa modalidade de ensino e com a redução das desigualdades regionais. A Lei nº 11.195/2005 revogou o §5º do Art. 3 da Lei nº 8.948/1994, atribuindo novo protagonismo ao Governo Federal na criação de estabelecimentos de educação profissional. Respaldado por aquela lei, o Plano de Expansão da Rede Federal, elaborado na Secretaria de Educação Profissional e Tecnológica do Ministério da Educação, previu, para o período de dez anos, a criação de pelo menos 400 novos estabelecimentos, em um intenso processo de interiorização e ampliação de vagas. Em 2016, a meta já havia sido superada e estavam em funcionamento 504 novas unidades, além das 140 preexistentes. Em 2008, a Lei nº 11.892 instituiu a Rede Federal de Educação Profissional, Científica e Tecnológica, composta pelos Institutos Federais (IF), Centros Federais de Educação Tecnológica (Cefet), a Universidade Federal Tecnológica do Paraná (UTFPR), escolas técnicas vinculadas a universidades federais e, a partir de 2012, pelo Colégio Pedro II.  A Lei nº 11.892 também criou os 38 Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia, herdeiros, em sua maioria, dos antigos Cefets. Organizados em uma estrutura multicampi, passaram a ministrar (a) a educação profissional técnica de nível médio, sobretudo na forma de cursos que integrassem o técnico com o ensino médio, (b) licenciaturas, (c) bacharelados e engenharias, (d) cursos de pós-graduação lato e stricto sensu. O propósito era garantir a integração e verticalização da educação, otimizando, em primeiro lugar, nos termos da própria lei, “a infraestrutura física, os quadros de pessoal e os recursos de gestão”, e, por outro, possibilitando ao estudante dar seguimento aos seus estudos do ensino médio à pós-graduação. Com a proposta de articular trabalho, ciência e cultura, desconstruindo as barreiras entre ensino técnico e científico, os Institutos Federais inauguraram uma política transversal de educação profissional, científica e tecnológica que, em grande medida, sintetiza o projeto da Rede Federal. Isso porque assentaram-se na formação humana integral, no trabalho, na prática social como fonte de conhecimento e na indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão. Os Institutos Federais também colocaram o desenvolvimento regional no centro de suas ações, com o propósito de articular os arranjos sociais, culturais e produtivos locais. Embora o processo de ampliação e consolidação da Rede Federal de Educação Profissional, Científica e Tecnológica tenha sido limitado por cortes orçamentários a partir de 2016, ela chegou ao ano de 2019 com 653 unidades em funcionamento, espalhadas por todo Brasil. Ofertava, então, 10.888 cursos, superando a marca de 1 milhão de matrículas, das quais 92,8% concentradas nos Institutos Federais.

Roberta dos Reis Neuhold

 


TRABALHO-EDUCAÇÃO

Esse hífen ligando trabalho e educação forma uma terceira palavra, composta e caracterizada por unidade semântica e indivisibilidade. Significa que trabalho contém educação / trabalho como princípio educativo, assim como a educação é um trabalho / o trabalho da/na/pela educação. Observa-se ainda, nessa locução, a categoria trabalho vindo primeiro. Isso não é sem motivo. Em relação à categoria educação, guarda precedência ontológica, epistemológica, ética e política. Decidiu-se por essa inversão na década de 1980 em meio a questionamentos ao conceito de capital humano, às reformas educacionais nele inspiradas, ao pressuposto equivocado de que o trabalhador possui um capital, sua força de trabalho. Essa, de fato, é um bem que o possibilita, mediante sua venda, adquirir meios de sobreviver. Força de trabalho, na verdade, é, simplesmente, mercadoria negociada no mercado de trabalho. O conceito de capital humano pressupõe, ainda, correlação entre aumento de mobilidade social e escolaridade. Entretanto, diante do crescimento do desemprego estrutural e da precarização das relações de trabalho de jovens com altos níveis de escolarização, tal afirmação soa como falácia. Contrapondo-se à concepção liberal de educação como capital humano, os debates éticos e político-pedagógicos do início dos anos 1980 aprofundaram a compreensão do caráter ontológico do trabalho e sua primazia na constituição do ser social. Trabalho não no sentido de emprego, mas como atividade humana criadora de valores de uso em atendimento às necessidades sociais e como produção das condições de liberdade. Com isso, na Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Educação – Anped, o Grupo de Trabalho, GT-9, criado em 1981 com a denominação Educação e Trabalho adotou o nome Trabalho e Educação. Em 1986, os pesquisadores da área solidificaram os argumentos em favor dessa inversão em reunião no Conselho Nacional de Pesquisa Científica e Tecnológica – CNPq. Desde então, ao se dizer trabalho e educação ou, melhor, trabalho-educação, busca-se situar e compreender as intervenções em formação humana nas suas relações com as práticas sociais estruturantes da sociedade. Esse entendimento é fundamental para os propósitos das instituições de educação profissional e tecnológica, dentre elas, os Institutos Federais, as escolas em geral, sindicatos, movimentos sociais, empresas públicas e privadas e demais espaços onde transcorrem intervenções educativas. As temáticas tratadas por esse campo de estudo têm mobilizado diversos interessados, individual e coletivamente, reunidos em grupos e núcleos de pesquisa, articulados por linhas de pesquisa de programas de pós-graduação, envolvidos em programas nacionais e internacionais de intercâmbio. Um espaço importante para a discussão delas é o representado por esse GT-9 da Anped.  Vinculados a ele, surgiu o Intercrítica - Intercâmbio Nacional dos Núcleos de Pesquisa em Trabalho e Educação, uma articulação destinada a discutir e trocar experiências. Cinco edições do Intercrítica já ocorreram desde 2002. Em 2020, o Instituto Federal de Educação Profissional, Ciência e Tecnologia do Espírito Santo foi sede do quinto encontro. As temáticas sobre Trabalho-Educação têm também conquistado espaços não acadêmicos. Referem-se a questões e níveis de abordagem variados. Algumas focalizam aspectos e fenômenos gerais e transversais à estrutura da sociedade, outras incidem sobre questões mais específicas. Envolvem, por exemplo, o mundo do trabalho, a centralidade do trabalho, o trabalho como princípio educativo, trabalho e subjetividade, trabalho e tecnologia, a crise do capital, a crise do trabalho, a crise da educação e a crise social, formação de trabalhadores, formação profissional, certificação profissional, sujeitos trabalhadores, gestão da força de trabalho, gestão da educação, da escola e do currículo, conhecimento, saberes do trabalho, práticas pedagógicas, cotidianos do trabalho, culturas de trabalho, construção de identidades, consciência de classe, mercantilização da educação, democratização do conhecimento e da sociedade, políticas e práticas educacionais, direitos sociais, inserção produtiva, desemprego estrutural, trajetórias profissionais, qualificação do trabalhador, noção de competência e suas ambiguidades, reformas educacionais, estratégias capitalistas de acumulação, mudanças tecnológicas, globalização dos mercados e do capital, organização da produção e do trabalho, reestruturação da produção capitalista, flexibilização e desregulamentação das relações de trabalho, precariedade das condições de trabalho, racionalidade capitalista, sociabilidade fundada nas relações capitalistas, organização e educação dos trabalhadores, movimento social e sindical, pedagogia e sindicalismo, trabalhadores da educação, formas de organização da vida, práticas econômicas e culturais diversas de sobrevivência, produção associada, processos de trabalho, processos educativos, processos históricos, processos de emancipação, relações entre capital e trabalho, relações de trabalho, relações sociais de sexo e de gênero, valores culturais, transformações sociais, reprodução do capital e respostas dos trabalhadores.

Lucília Regina de Souza Machado

TECNOLOGIA

Os Institutos Federais têm nesse termo um dos elementos da sua designação e identidade, pois são instituições de educação profissional, ciência e tecnologia. Tecnologia, para os Institutos Federais, é também uma das categorias ou dimensões centrais da sua concepção pedagógica, articulada a três outras: a do trabalho, a da cultura e a da ciência. Propostas educacionais, especialmente as comprometidas com a formação integral e a emancipação humana, também vêem a tecnologia como um de seus componentes indispensáveis. Karl Marx incluiu a educação tecnológica na perspectiva da politecnia no programa de educação da classe trabalhadora. Ele entendia ser ela importante para o ganho de tempo e o aumento da produtividade e, livre do controle capitalista, seria fundamental para gerar mais tempo livre para as pessoas. Fundamental para a transformação de materiais, energia e informação, não se pode ver a tecnologia como um elemento neutro. As relações que ela guarda com a economia, a política, a cultura e o meio ambiente precisam ser discutidas e problematizadas. Se concebida, controlada e utilizada com a perspectiva social e de respeito à dignidade humana pode cimentar inovações e transformações importantes, contribuir para a melhoria da qualidade de vida e garantir um horizonte de futuro mais alentador para a humanidade. O problema é que nem sempre isso ocorre haja vista ser um suporte fundamental ao belicismo e à disputa armamentista entre as nações. Tecnologia, portanto, é um fator de grande influência na sociedade. Sua presença está cada vez mais frequente na vida social e no quotidiano das pessoas. Sua influência, positiva ou negativa, recai sobre questões éticas. Daí, seu lugar e importância na formação do indivíduo. Não se pode desconsiderar também seu impacto na uniformização da cultura. E isso precisa ser mais discutido. Tecnologia também tem presença certeira nos projetos de desenvolvimento social. Por conta disso, os Institutos Federais, desde seu nascimento, são chamados à inserção social e à colaboração com arranjos produtivos locais. Há muitas expectativas com o ensino da tecnologia e, por conseguinte, também com as possibilidades dos Institutos Federais de contribuir com a pesquisa, a extensão e a formação de pessoas capazes de fazer avançar a prática social e produtiva. Mas sempre é bom perguntar sobre quais capacidades, para quais criatividades e de que forma se faz a educação tecnológica. Nem sempre as referências na condução dessas ações são convergentes. Subjacente à tecnologia há intenções humanas, realidades físicas e sociais vistas como alvo de mudança, saberes de diferentes origens, soluções fundamentadas em paradigmas diferentes. É preciso sempre perguntar sobre as motivações que originaram as vontades e as intenções com respeito à concepção, controle e uso das tecnologias. Tais questões não estão fora dos contextos das sociedades, refletem interesses sociais, formas de conceber a relação entre ciência e técnica, elementos da cultura dominante, ambientes e objetos técnicos, métodos e regras a serem observados, ferramentas materiais e simbólicas, linguagens e gestos, práticas vistas como imprescindíveis para o sucesso. Mas, qual sucesso e a custo de quê? Tecnologia é, portanto, produção social. Nesse sentido, guarda ligação estreita com a estrutura social. Da mesma forma, as técnicas por ela utilizadas e o discurso que ela constrói sobre e a partir dessas técnicas. Por isso quando tecnologia também se torna matéria escolar é importante levar em conta as implicações que possa ter com finalidades educacionais, questões epistemológicas, políticas, pedagógicas e psicológicas. A escola precisa considerar os interesses sociais, econômicos e políticos envolvidos na tecnologia. A ela cabe perguntar sobre os saberes pelos quais se construíram as normas técnicas e o que as justificam. A ela cabe indagar sobre a garantia que essas normas trazem à execução adequada de uma atividade e se elas guardam coerência com princípios éticos. Cabe à escola não ocultar o papel e o funcionamento social dos saberes relacionados às práticas técnicas e lembrar sempre que há outras naturezas de saberes além do científico. Esses saberes encontram-se relacionados a outras modalidades de expressão, aos papeis sócio-profissionais e aos instrumentos utilizados. Entretanto, nem sempre os aspectos humanos e sociais são trazidos à tona. E por que isso? Várias são as pontas às quais se ligam o entendimento do que é tecnologia e as possíveis respostas para essa questão. Uma delas parece preceder todas as demais. Trata-se do simples fato de que tecnologia como atividade humana tem seu significado revelado como ciência do trabalho. A matéria da qual ela trata é precisamente o trabalho humano, tudo o que envolve as condições, meios e formas de intervir na transformação da realidade. Nesse sentido, a tecnologia vem a ser um discurso argumentado sobre as técnicas e os objetos técnicos cujas premissas, pressupostos, pretextos ou alegações podem ter maior ou menor ligação com conceitos teóricos científicos, ser generalizáveis ou revelados abertamente. Apesar disso e por isso mesmo, precisam ser conhecidos, desnudados e, se for o caso, contrapostos.

Lucília Regina de Souza Machado