quinta-feira, 6 de maio de 2021

CERTIFICAÇÃO PROFISSIONAL

A lei que criou os Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia (IF) e instituiu a Rede Federal de Educação Profissional, Científica e Tecnológica (Lei nº 11.892, de 2008) dispõe que essas instituições têm papel de acreditadoras e certificadoras de competências profissionais (art. 2º, § 2º). Essa atribuição está relacionada ao previsto na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei nº 9.394, de 1996, art. 41), que estabelece a possibilidade de avaliação, reconhecimento e certificação de conhecimentos adquiridos no trabalho e em outros espaços de formação para fins de continuidade de estudos. Essa previsão legal, por sua vez, tem em seus fundamentos a compreensão de formação profissional em sentido amplo, englobando processos educativos que se desenrolam em diferentes esferas da vida social e que têm como objetivo, direta ou indiretamente, o desenvolvimento de saberes e valores julgados importantes para a atuação na vida produtiva. O reconhecimento formal de conhecimentos profissionais adquiridos ao largo do ensino oficial, particularmente daqueles adquiridos na prática laboral, é uma reivindicação de longa data dos trabalhadores. Mas, a questão da avaliação e da certificação desses conhecimentos encontra suas raízes ainda em outro terreno, o da organização de padrões de produção para a gestão da qualidade. Em âmbito internacional, desde o final da década de 1940, capitaneada por entidades congregadas na Organização Internacional de Normalização – ISO (International Standards Organizations), desenrolava-se a discussão sobre o estabelecimento de padrões mínimos de qualidade industrial. Essas referências passaram a servir de orientação aos processos de certificação de conformidade, classificadas em: certificações de produtos, processos e serviços; certificações de sistemas de gestão; e certificações de pessoas. No Brasil, a organização dessas normas ficou a cargo da Associação Brasileira de Normas Técnicas – ABNT, instituição privada fundada em 1940. Na década de 1970, a Organização Internacional do Trabalho – OIT e o Centro Interamericano de Investigação e Documentação – Cinterfor desenvolveram um projeto considerado um marco nas discussões sobre o tema da certificação profissional no país. O principal propósito da proposta então em debate era o reconhecimento formal dos conhecimentos adquiridos pelos trabalhadores em suas experiências de trabalho e em processos de qualificação profissional. Nas décadas seguintes, foram colocadas em curso várias iniciativas de certificação de pessoas vinculadas, principalmente, às políticas de qualidade e produtividade. Em geral, os processos de certificação envolvem diversas fases e formas de avaliação como provas de conhecimento; testes teórico-práticos; análise de documentos relacionadas às trajetórias de formação e experiências profissionais, podendo ou não incluir etapas de formação complementar. A certificação pode ou não constituir uma exigência para atuação profissional. Em algumas ocupações, o exercício profissional em um determinado tipo de atividade pode ser vedado a quem não possui o ateste formal da expertise necessária, expresso no certificado emitido por instituição credenciada. Se na esfera do trabalho, o uso das certificações está circunscrito às normas de exercício profissional, aos acordos coletivos, às estratégias de seleção de pessoal, entre outras possibilidades no âmbito da gestão de pessoas, na perspectiva educacional o processo de certificação de conhecimentos profissionais é compreendido, principalmente, como uma estratégia para continuidade e ou conclusão dos estudos. É sob esse ponto de vista que se estrutura, por exemplo, a proposta da Rede Nacional de Certificação Profissional e Formação Inicial e Continuada (Rede Certific), uma iniciativa do Governo Federal, instituída por portaria interministerial (Portaria MEC/MTE nº 1.082, de 20.11.2009), com o objetivo de promover e orientar a oferta de programas de certificação e formação profissional, tendo as instituições da Rede Federal como entidades certificadoras e acreditadoras. A estruturação de uma proposta de certificação profissional é, portanto, perpassada por distintas lógicas: a educacional, a da competitividade mercadológica, a do trabalho em sua dimensão formadora, representando um importante desafio para instituições de educação profissional e tecnológica públicas comprometidas com a formação integral dos educandos e com o desenvolvimento dos territórios que integram. Outro desafio colocado para a estruturação de projetos voltados à certificação profissional está relacionado ao deslocamento da fundamentação do processo do conceito de qualificação profissional para a noção de competência. A certificação profissional implica uma dimensão cartorial ou jurídico-administrativa de conferência entre requisitos exigidos, estabelecidos em uma norma ou quadro de referência, e atributos apresentados, levando ao ateste, com determinado grau de certeza, das equivalências encontradas. A qualificação profissional, na sua dimensão de relação social, traduz códigos coletivos de acesso ao mercado de trabalho e às negociações a ele inerentes. Trata-se de um conceito mais tangível uma vez que se expressa em diplomas, certificados, títulos, tempos de experiência laboral, entre outros elementos que, em tese, podem corresponder a processos formativos que colaboraram para a aquisição de saberes, valores, habilidades e demais qualidades julgadas necessárias a um determinado posto de trabalho ou ocupação. A competência é uma noção fluida, que busca expressar a capacidade de conjugar diferentes saberes e outros atributos em uma situação de trabalho real na busca por soluções ante os eventos a que o trabalhador se vê exposto. A noção de competência impõe um dilema para a avaliação, uma vez que esta é um fenômeno situado e finalístico, ou seja, ela se manifesta em situações concretas na busca pelo alcance das finalidades da atividade e objetivos organizacionais. Porém, o que se tem em um processo avaliativo não é a situação de trabalho real, mas uma simulação. Mesmo em situações concretas, não é possível observar a competência em si, mas apenas alguns de seus aspectos, ingredientes ou indicadores. Além disso, como a noção de competência está vinculada à ideia de resposta a eventos, portanto, algo singular, não replicável, o que se tem como resultado da avaliação são predições. Equivale a dizer que o ateste se dá sobre qualidades profissionais, saberes e habilidades, que indicam a probabilidade de que a competência se manifeste nas situações em que for requerida. Além disso, é importante lembrar que essa noção assume destaque ante as novas formas de organização da produção, o aumento da complexidade, da incerteza, do individualismo. A noção de competência é vinculada à ideia de agregação de valor para organização e para o indivíduo (não necessariamente para o coletivo dos trabalhadores), sendo, em geral, capturada e moldada aos discursos de ampliação e manutenção da competitividade.  Todavia, o reconhecimento de competências profissionais (ou o reconhecimento de atributos que podem colaborar para um agir competente) pode, contraditoriamente, também significar o atendimento de demandas dos trabalhadores na medida em que denota a validação de aprendizagens ocorridas em suas trajetórias de vida. Ademais, impõe às instituições certificadoras a consideração à dimensão formativa da atividade de trabalho e a investigação sobre o conhecimento vivo, em movimento, manifesto no trabalho real em diálogo com o prescrito nas normas e disciplinas acadêmicas.

Caetana Juracy Rezende Silva